A ultrapassada obsessão pelo "camisa 10"


É comum, durante as janelas de transferências, que os torcedores dos grandes clubes do Brasil fiquem ansiosos com a possibilidade de terem grandes craques do futebol envergando o manto de seus respectivos clubes.

E não é preciso muito esforço para perceber o maior desejo da maioria dos torcedores de qualquer clube: um camisa 10. O famoso "meia clássico", jogador de passe refinado e visão de jogo sobrehumana, que sempre que domina a bola, a torcida prende a respiração, pois já imagina que algo grandioso pode surgir naquele momento.
Alex, um dos principais meias da história do Palmeiras
Desde seu princípio, o futebol mundial promoveu a consagração de muitos jogadores desse estirpe. Rivellino, Zico, Ademir da Guia, Didi, Sócrates, Platini, Zidane, Rivaldo, Alex, Djalminha, entre tantos outros. O armador. O pensante. O jogador que se posiciona à frente da grande área adversária, arquitetando bolas geniais em profundidade para os pontas pelas costas da zaga, tabelas com o centroavante e poderosos chutes de meia-distância. Isso tudo, além de ser o dono da bola parada do time, é claro. Qual torcedor não sonha em ter em seu time um grande jogador assim?

Entretanto, esse desejo enraizado no subconsciente coletivo vem se tornando obsoleto dentro do futebol mundial. Antigamente, o meio-campo podia ser dividido em duas partes: volantes e meias. Marcadores e pensadores. Brucutus e craques. Com o passar dos anos e a disciplinação tática dos jogadores, a posição de meio-campista vem se tornando cada vez mais multifuncional. Um meia precisa recompor e aprender a marcar. Um ponta, precisa voltar para completar a segunda linha de marcação. Um volante precisa aperfeiçoar seu passe, para que a saída de bola do time não fique comprometida. 

Exemplos não faltam: Toni Kroos, meio-campista do Real Madrid, é um jogador de excelente visão de jogo, passe e chutes de longa distância. Mas joga à frente da linha de defesa, como primeiro meio-campista. Aqui no Brasil, é comum que a posição de Kroos seja ocupada por um jogador parrudo, forte na marcação e com pouca qualidade com a bola nos pés. E um jogador da qualidade de Kroos, aqui nas nossas terras, com certeza seria qualificado como "meia armador". 

Andrea Pirlo é outro exemplo perfeito. Antes de sair da Juventus, Pirlo, assim como Kroos, era o primeiro jogador do meio-campo, entre a defesa e a linha de 4 ofensiva. O mesmo Pirlo, que chegou a ser sonho de muitos palmeirenses como reforço, para jogar exercendo qual função? A meia. A camisa 10 (ou 100) no centenário do clube. 
Adaptado, o alemão Özil se tornou principal jogador do Arsenal
Outro jogador que não poderia ficar de fora é Mesut Özil. Diferente de Kroos e Pirlo, Özil não joga à frente da zaga. É jogador de qualidade absurda no passe, visão de jogo, lançamentos, mas a marcação não faz parte de sua lista de especialidades, o jogador não cabe como primeiro meio-campista. Enquanto no Brasil, um jogador da qualidade de Özil seria incontestavelmente o craque de qualquer time, intocável, que não precisa marcar ninguém, só ficar plantado esperando a bola para armar o jogo, na Europa, Mesut teve que ralar. Na Seleção Alemã, Özil joga aberto, ora pela direita, ora pela esquerda. Quando chegou no Arsenal, foi escalado aberto, mais recuado, pela esquerda, pela direita, e finalmente, como interno. No 4-2-3-1 de Wenger, o camisa 11 é quem fica pelo meio na linha de três, atrás do centroavante. 

Hoje, essa posição é a que mais se assemelha ao clássico camisa 10. A diferença, entretanto, é que mesmo esses jogadores que se posicionam entre os pontas, precisam compor a linha de marcação quando o time está sem a bola. Por isso, não é raro ver Özil recuperando a bola no campo de defesa, ou até mesmo dentro da própria área.

O principal motivo de muitos times brasileiros sentirem essa necessidade por um camisa 10, se dá justamente por conta do esquema citado. O 4-2-3-1 (ou 4-3-3) é um dos formatos mais comuns de formação no país. O Santos, que tem Lucas Lima exercendo a função, foi um dos times de maior destaque no Brasil em 2015. O Fluminense foi campeão brasileiro em 2010 com Conca na mesma função. O Cruzeiro teve Montillo até 2012. O Palmeiras teve Valdívia de 2006 a 2008, e depois de 2010 a 2015. O futebol brasileiro em si, dá vazão para que o torcedor se torne obcecado com tal peça. 

Porém, o próprio futebol brasileiro nos dá ótimos exemplos de como a função do camisa 10 não é mais obrigatoriamente necessária: o Cruzeiro, bi-campeão com Marcelo Oliveira, não tinha um "camisa 10 clássico": Éverton Ribeiro jogava na ponta-direita, Ricardo Goulart jogava por dentro, e nenhum dos dois carregava consigo a responsabilidade integral de "armar" o time. Enquanto Ribeiro abusava da velocidade e dribles pelas beiradas, além de cadenciar o jogo quando necessário, Goulart aparecia como elemento surpresa pelo alto, chutava de média distância e trabalhava muito em conjunto com o centroavante Marcelo Moreno. O Corinthians, campeão em 2015, também não. Embora Jadson e Renato Augusto tenham "status" de camisa 10, nenhum ficou encarregado unicamente de armar o time. No 4-1-4-1 de Tite, Jadson jogava aberto pela direita, Malcom pela esquerda e Renato fazia dupla com Elias como internos na segunda linha, os dois partindo de trás com a bola dominada. 

Se procurarmos exemplos no futebol europeu, fica ainda mais fácil entender. No Barcelona, Iniesta e Rakitic são internos, enquanto Neymar e Messi jogam abertos, afunilando com Suárez. No Real Madrid, Modric e Isco fazem a parte interna, enquanto Cristiano Ronaldo e Bale abrem, mais Benzema à frente. No Bayern, atualmente jogam Müller e Vidal por dentro, Robben e Douglas Costa abertos e Lewandowski à frente. O padrão é claro: a parte interna do meio é montada por jogadores que partem de trás com a bola dominada, pelas beiradas jogam os mais velozes e habilidosos, e por último, seus centroavantes. Todos recompoem, marcam, recuperam a bola e atacam. Cada um em sua parte designada do campo, contribuindo de forma igualitária para o desempenho de seus respectivos times, dentro de suas respectivas características. Jogadores como o já citado Özil, James Rodriguez e Mario Götze, são exemplos de peças que se adaptaram à função de internos para obter espaço em times de conceitos mais modernos de jogo. Os dois últimos inclusive, não são considerados unanimidade em seus times, mesmo tendo enorme potencial comprovado. E jogadores como Lucas Lima, Montillo, Conca, Thiago Neves, entre outros desejos comuns da maioria dos torcedores brasileiros, também teriam de se adaptar, para poder jogar em times modernizados taticamente. 

No fim das contas, sempre vai ser bom ter em seu time aquele jogador diferenciado, que sempre tem uma jogada diferente para executar. Mas, antes de mais nada, é importante ter um time aplicado taticamente, equilibrado e que consiga se adaptar às mais diversas condições de jogo. No futebol atual, o trabalho coletivo de um time é tão ou mais importante do que a qualidade individual de cada peça. Quando se sobrecarrega apenas um jogador, o desempenho do time passa a depender, em boa parte, do mesmo, podendo colocar tudo a perder, caso tal jogador se torne indisponível. É só lembrar da Seleção Brasileira na Copa de 2014. O time foi todo criado em volta de Neymar, e após a grave lesão do nosso atacante, a Seleção de Felipão ficou tão baleada que levou a maior goleada de sua história, perante ao excelente coletivo da Alemanha.

O futebol mudou, e a visão de quem o acompanha também precisa mudar. O futebol brasileiro não precisa de mais "camisas 10", ou de mais "cabeças de área". O nosso futebol precisa de mais meio-campistas completos.
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Autor: Ricardo

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